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UM GOLE DO UNIVERSO

em crônicas

Em 2016 coloquei como uma das metas do ano "Aprender a fazer um bom nhoque", mas foi só no final de 2018 que finalmente fiz um nhoque com cara e sabor de nhoque. Um prato que eu pensei "Eu pagaria por isso em um restaurante. Não pagaria muito caro, mas pagaria". E considerando meus talentos gastronômicos, pra mim isso foi uma baita conquista, que só foi possível porque eu me empenhei muito mais do que nos anos anteriores. Em um mês eu fiz mais nhoques (e tentativas de nhoques) do que a soma de todas as tentativas dos dois anos anteriores. Eu aprendi empiricamente que a repetição constante é um importante hábito para aprendermos a fazer algo que exige técnica, tal como escrever... Que é uma das minhas metas de 2019 :)

Foto do escritorKaren Harumi

3º Vestido

Atualizado: 20 de set. de 2019


(continuação da crônica 2º Vestido)



O primeiro casamento no meu núcleo de convivência social rotineira sem ser familiar foi da Bia Yumi, ela trabalhava há um século na Organização Oficial de Turismo de Aruba (Aruba Tourism Authority) e nos convidou para um casamento que eu achava que só acontecia nas novelas da Globo: passaríamos 1 semana na bela Ilha de Aruba mergulhando entre navios naufragados, comendo frutos do mar e tomando Balashis geladas com o pé na areia olhando o mar caribenho.


Além de toda a organização pessoal e coletiva da viagem, em um momento eu também precisei me organizar sobre o vestido que usaria na celebração.


A Bia Yumi é a pessoa mais sociável que eu conheço, mais do que eu mesma. Eu beiro a falta de noção fazendo amizade pra vida inteira na rua com gente que (infelizmente) eu nunca mais vou ver. Já a Bia Yumi é uma versão mais sábia e seletiva. Ela faz laços extremamente fortes e mesmo o casamento sendo no Caribe, formamos um grupo de oito madrinhas felizes!


Ficou decidido que todas nós compraríamos o mesmo modelo de vestido em um site como surpresa, já que a Bia Yumi só havia comentado a preferência de cor. O único porém foi quando eu e outra madrinha, as últimas a comprar, descobrimos que o vestido já estava esgotado e tivemos que improvisar com uma costureira que tentaria copiar o vestido original o mais fielmente possível.


É muito estranho ler o último parágrafo e lembrar de como foi na época...


Eu tentei escrever da forma mais sucinta e direta possível e quando li o que eu havia escrito, foi algo tão pequeno perto de toda a viagem e celebração que eu até esqueci que era sobre exatamente isso que eu ia comentar. Pensei "Olha que bobo" - E REALMENTE FOI! Por isso dá ainda mais vergonha explicar o porquê esse vestido foi algo tão grande pra mim depois de escrever que foi uma situação pequena. Ainda mais considerando que EU NÃO SEI se EU SEI contar essa história sem também explicar todo o contexto da minha vida e mencionar a vida dos meus pais e toda a sociedade de consumo, mas eu vou tentar.


Pense que eu me sentia pobre.

Esse é o contexto essencial.


Em 2015, no ano do casamento, eu não estava lá na minha melhor época. Tinha muita coisa mudando, muita coisa incrível acontecendo, mas eu só conseguia focar nas coisas ruins que eu julgava estarem dando errado... Foi inclusive o que eu fiz com o vestido.


Quando você pensa que alguém vai para um casamento em Aruba passar uma semana com amigos, entre todos os possíveis assuntos que isso pode render, a última coisa que você imagina é que ela vá querer discorrer 2h sobre o vestido que precisou ser costurado ao invés de comprado num site chinês - mas era só disso que eu sabia falar pra quem não ia no casamento. Familiares, amigos de outros núcleos e até desconhecidos em baladas ficaram sabendo do meu desvalido vestuário da cerimônia.


"Aruba é uma ilha?"


"É sim. Por isso mesmo que eu fico preocupada em ir com o vestido que a costureira fez, porque o tecido não é o mesmo, sabe? É mole, voa fácil..."


"A Bia Yumi é aquela sua amiga da faculdade?"


"Ela mesma. Como o tempo passa rápido, né? Tão rápido que quando eu fui comprar o vestido, já tava esgotado, acredita?"


"O casamento vai ser na praia?"


"Vai sim, ainda bem. Tomara que esteja com o sol tão forte que as pessoas não consigam abrir o olho direito e ver que o meu vestido é só uma versão genérica dos das outras madrinhas."


"Lá eles falam inglês ou espanhol?"


"Eles falam tudo, inglês, espanhol, papiamento. Vão poder espalhar que o meu vestido é diferente em todas as línguas."


...Eu realmente achava que alguém ia querer falar do meu vestido além de mim.

Nossa, eu tava MUITO chata.

Eca.


...Eu não falava dos meus amigos, das praias, das comidas, do mar, da areia, do sol, ou da animação de fazer um tour de Jeep pelo deserto de Aruba ou conhecer a Baby Beach, a praia que parecia uma piscina gigante e que era tão rasa que quando você já estava em pleno alto mar, a água ainda batia no joelho.


...É amiguinhos. Tinha um bilhão de coisas maravilhosas que eu poderia ficar descrevendo por dias, mas eu só falava do já citado vestido que "deu errado".


Minha atitude foi péssima e dramática. Eu achava que o vestido diferente era o reflexo de como o mundo era injustíssimo comigo. O vestido-cópia era a materialização de como eu sofria mais, que a minha vida estava uma miséria e deixava visível que eu era uma intrusa no mundo dos meus amigos. Eu sentia que não importava o quanto eu me esforçasse, a desgraça podia ser acumulativa e a pobreza me perseguiria nos detalhes e sempre me segregaria.


Era como se o vestido estivesse estampado com o meu extrato bancário rodando o cheque especial.


Mas a verdade é que a única coisa que aquele vestido mostrou foi o quanto eu posso ser cega, ingrata e egoísta, o quão rápido eu posso abandonar os meus valores por situações tão pequenas. O quanto me faltava, não de dinheiro, mas de coerência no que eu realmente acreditava.


Levei anos para entender que a viagem para Aruba, assim como a vida, não foi fácil pra ninguém; cada um por motivos próprios, mesmo que nem sempre financeiros e em alguns casos até bem parecidos com os meus. A maior diferença é que eu era a única que reclamava sobre isso todo dia pra todo mundo.


Eu sentia como se o chão rachasse e um mar revolto começasse a me separar dos meus amigos e todos ficassem do lado de lá, do lado fértil e verde da terra e eu ficasse pra trás naquela terra seca de areia vermelha e galhos mortos. Eu até hoje consigo visualizar essa cena como eu fazia nos meus dias mais tristes. O mar, pro lado deles, era cristalino e cheio de peixinhos e flamingos felizes, como Aruba, e pro meu lado o mar ia escurecendo e as ondas batiam na terra com força pra que eu nem chegasse perto. Não tinha vida, ou se tinha, o mar era tão negro que nem dava para ver. E toda vez que eu fechava os olhos por causa da água salina que espirrava das ondas que quebravam do meu lado, o mar se expandia e a distância aumentava.


Isso tudo por causa de um vestido.

Você também quase se esqueceu que era só por causa disso?

Não te julgo, apesar de me julgar.


...Isso porque, vale lembrar, outra madrinha também não comprou o vestido no site.

Pois é.

Não é como se eu tivesse esquecido disso, eu só pensava que ela foi escolhida pelo acaso e eu era vítima da desgraça.

Eu me sentia tão especial que eu achava que o mundo era cruel apenas comigo, com o resto ele era apenas aleatório.


A miséria sempre esteve muito mais em mim do que nas minhas dívidas.

E hoje eu tomo muito mais cuidado com essa afirmação.

Porque existe a pobreza real, física e material. Aquela que incomoda quando vejo alguém dormindo na rua nas noites frias, quando vejo alguém defecando escondido atrás de uma árvore, pedindo dinheiro quando estou sentada na calçada de um bar da Augusta. Mas a miséria também pode ser um sentimento corrosivo capaz de tocar mesmo os mais abastados.


Eu lembro de uma vez que passei muita fome, não tinha dinheiro nem mesmo pro miojo. Passei um dia e meio sem comer nadica de nada. Não era passar forme de "passar vontade", era de querer comer qualquer coisa e não ter. De suprir a fome com sono.


E em 2015 eu ainda me sentia muito pobre por esse dia.

Sem saber que eu não era pobre exatamente por ter passado por isso apenas por um dia.


Até hoje eu não me compreendo. Como é que eu podia me sentir pobre indo passear em Aruba? Ainda mais por causa de um vestido?!


E eu sei, "o meu Eu-do-presente não deveria julgar o meu Eu-do-passado, porque a consciência que eu tenho hoje veio da vivência de todos os dias que me trouxeram até aqui".


...Mas que não tinha muito sentido eu me sentir desprivilegiada indo pra Aruba já parecia tão óbvio mesmo pra Karen de 2015.


Por mais que eu saiba muita coisa na teoria, que eu saiba que o valor das coisas não estão no seu preço, que eu sempre tenha tido amigos extremamente compreensivos e que nunca me rebaixaram por nada, nem pelos meus problemas reais... Ainda assim eu permiti a minha insegurança pensar que o que realmente importava era tudo o que eu fazia de errado, incluindo que eu não consegui comprar o vestido antes dele esgotar e todo mundo ia saber. Situação que eu não admitia que tinha muito mais a ver com as minhas decisões e desorganização do que com as minhas condições.


Eu demorei muito pra aceitar tudo isso, porque é sempre difícil encarar os nossos defeitos, e a maneira como eu lido com dinheiro e a minha própria imagem são dois dos meus maiores. Muita coisa mudou de lá pra cá, mas não o suficiente para eu me sentir satisfeita com o meu comportamento financeiro. Ainda assim, fico feliz de hoje, apesar de estar longe de uma vida financeira estável, eu saber o tamanho da sorte e da riqueza que eu tenho.


Demorou anos.


Mais especificamente 4 anos em outra viagem de casamento.


E uma das primeiras coisas que eu fiz foi me desculpar com a Bia Yumi e a negatividade que eu havia despachado no seu casamento...

E ela ficou feliz por mim, mesmo depois de me ouvir nos momentos mais inapropriados (pedi perdão quando ela pintou o meu cabelo, nadando na piscina, no sagrado café-da-manhã, lokona nas festas e até enquanto sobrevivíamos à um ataque das algas marinhas...)!


O pedido de desculpas oficial foi no banheiro da festa de casamento da nossa outra amiga, a Bia Lena. A Bia Yumi mal abriu a porta e eu já estava lá com o olhar penetrante sedento por perdão. Não tinha ninguém além de nós e o fantasma que ligou o secador de mão do nada. Eu chorei pedindo desculpas e só não me joguei no chão porque eu estou aprendendo a não fazer mais isso (ainda mais em banheiros) e quando terminei, mesmo com um reggaeton nervoso tocando de fundo, eu esperei todo um discurso performático da parte dela. Algo a altura do meu valiosíssimo aprendizado, bem no estilo "Eu te perdôo, Karen Harumi de la Vega" com um olhar igualmente penetrante e uma lágrima de canto de olho.


QUE NADA! Ela disse um "que bom, Harumi!" e deu um sorriso fofo que você precisaria conhecer a Bia Yumi pra visualizar.


E quando eu insisti lembrando do meu péssimo comportamento sobre o vestido, ela me confortou sendo o excelente ser humano que eu não consigo parar de admirar:


"Eu nem sabia do vestido. Não sou eu quem precisa te perdoar, é você mesma. Fico feliz que você finalmente aprendeu que todos nós sempre te amamos pelo que você é e não pelo que você tem."


E com essa frase, eu peguei cada galho morto que estava ao meu lado na terra seca de areia vermelha e construí uma jangada e, finalmente, me juntei aos meus amigos do lado fértil.



Eu não consegui decidir qual montagem eu gostava mais.


Então coloquei as duas.


E inclusive uma terceira foto:

A prova de que eu já fui de All Star de CANO MÉDIO para um casamento NA PRAIA!

E de que no fim, com todo aquele vento, todos os vestidos voavam bastante.



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[ADENDO:

Aruba sempre terá um pedação do meu coração <3


Não só porque foi a celebração de duas pessoas que eu amo ou porque era uma viagem sensacional pro Caribe. Nem só porque voltei com um bronzeado estonteante ou comi o melhor ceviche da minha vida. Também não foi só pela incrível experiência de mergulhar no meio de um navio naufragado ou tirar uma das fotos mais bonitas que eu já saí com um pôr-do-sol no fundo. Uma boa parte, não posso negar, foi porque aprendi a preciosíssima lição de que dread e praia, ao contrário do que me parecia antes, NÃO COMBINAM. Maaas... Principalmente porque eu tive a oportunidade de estar ao lado de pessoas que eu fico feliz só por existirem, de estreitar amizades riquíssimas pelo que eles são e conhecer outras pessoas que eu jamais imaginaria o quão importante um dia seriam na minha vida, incluindo eu mesma.


...Isso pode parecer estranho, mas eu não sabia mesmo o quão importante eu era na minha própria vida. O quão imperativo era eu me conhecer para que eu pudesse encontrar o meu valor e jamais depositá-lo novamente em um vestido. Por isso quero agradecer imensamente a Bia Yumi e o Ved por terem nos proporcionado uma viagem tão memorável e também à todos que sempre acreditaram no meu melhor e escolheram ser meus amigos mesmo quando eu ainda nem sabia o que eu podia oferecer. Muito obrigada! <3]

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