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UM GOLE DO UNIVERSO

em crônicas

Em 2016 coloquei como uma das metas do ano "Aprender a fazer um bom nhoque", mas foi só no final de 2018 que finalmente fiz um nhoque com cara e sabor de nhoque. Um prato que eu pensei "Eu pagaria por isso em um restaurante. Não pagaria muito caro, mas pagaria". E considerando meus talentos gastronômicos, pra mim isso foi uma baita conquista, que só foi possível porque eu me empenhei muito mais do que nos anos anteriores. Em um mês eu fiz mais nhoques (e tentativas de nhoques) do que a soma de todas as tentativas dos dois anos anteriores. Eu aprendi empiricamente que a repetição constante é um importante hábito para aprendermos a fazer algo que exige técnica, tal como escrever... Que é uma das minhas metas de 2019 :)

  • Foto do escritorKaren Harumi

O lorenense corajoso em Machu Picchu

Atualizado: 29 de jan. de 2021

Você já foi pro Peru?


Eu tenho a sensação de que todo mundo já foi e só eu que não.


Ainda assim, eu sou fascinada pelo Peru e com certeza um dia irei.


Peru só não me atrai mais a atenção do que Santa Cruz de La Sierra e Lorena, as cidades em que cresci boa parte da infância.


Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, é algo tão distante da minha realidade atual que quando ouço qualquer coisa sobre lá eu me sinto nostálgica, me conectando com dias da minha vida que na verdade eu nem me lembro, porque eu era bem novinha mesmo.

Já Lorena, no interior de São Paulo, costuma não ter nada, então "ter algo" é sempre chamativo.

É uma cidade conhecida por ser desconhecida.


Que eu me lembre, Lorena apareceu no Jornal Nacional apenas duas vezes: Quando teve a explosão na Orica, uma fábrica na cidade que quando houve o acidente tremeu a cidade e estourou os vidros da escola igual os filmes do Michael Bay; e também quando decidiram emplacar as bicicletas da cidade devido ao grande número de furtos e acidentes. Na época até foi chamada por alguma mídia de Amsterdã do Brasil (ou do estado de São Paulo, ou do Vale do Paraíba, algo por aí) por causa das bicicletas serem o principal meio de transporte na cidade - mas olha, tenho por mim que esse título cabe bem à Lorena muito mais por outras razões.


POIS BEM, imagine então que chega até mim uma notícia que envolve o Peru, Lorena E MAIS: Cristiano - meu antigo colega de classe, que talvez até estivesse na mesma sala que eu quando as vidraças estouraram com a explosão da Orica (eu não lembro exatamente quando foi isso).


Brasileiro e outros turistas são presos por depredar Machu Picchu.


Os títulos das matérias variam e se você der um google vai encontrar toda essa variedade pra explorar, mas escolhi a que me foi mais próxima: a notícia do Lorena News.


O marketing deles é excelente.


Acabei de dar uma leve pesquisada no Google e acho interessante como a Madalegna, uma das turistas, cada hora tem uma nacionalidade nas notícias.

Brasileira, Argentina, Chilena... Definitivamente uma cidadã do mundo.


Não nego que por um momento eu pensei "NÃO ACREDITO QUE TÃO DEPREDANDO MACHU PICCHU ANTES DE EU CONHECER! ASSIM NÃO VAI SOBRAR NADA PRA QUANDO EU FOR VISITAR!" - Putíssima. Arrasada. Bem egoísta. Cagando (não literalmente, antes que saia no noticiário) pro patrimônio em si, preocupada com a experiência que eu espero viver lá um dia. Com vontade de esguelar o Cristiano. "Mas com tanto lugar no mundo!!! Lugares com banheiros!!!".


Mas no fundo me parecia uma história mal contada.


E então, mais de um semestre depois, o Cristiano surge dos confins dos contatos do Instagram enviando uma foto da época do colégio.


A oportunidade estava ali, não gaguejei - principalmente porque eu estava escrevendo e não falando - e aproveitei pra jogar ali, sem contexto nenhum, a frase "[...] vou ter que te contar que vi você numa notícia do Peru [...]" e assim a sua versão me foi conhecida e acho que merece ser compartilhada:


Achei que o Cristianos seria sucinto sobre isso. Falei no impulso. Racionalmente eu não esperava que ele fosse contar tanta coisa; eu estava no meio do trabalho e mal pude dar atenção quando ele começou a contar tudo.


"Pois é, essa notícia do Peru saiu no mundo inteiro. Bela jogada de marketing."


E explicou que esse tipo de coisa o incentivou a sumir um pouco das redes sociais.

Ele sempre foi presente na internet por ser comediante, mas ele passou por algumas situações que o fizeram deixar tudo em São Paulo e viajar por 5 meses de Kombi com novos amigos.


"Fui documentando a viagem, fazendo fotos, vídeos e cuidando do Instagram deles. E larguei o meu. Isso em 2017. Tava envolvido com a galera do humor e com YouTube, trabalhando com a Kéfera antes de viajar."


E disse bem sucintamente como ele deixou essa arte humorística e começou a explicar como se tornou o tal mochileiro das notícias:


"Nessa viagem conheci muita gente da música autoral e fui aprendendo a tocar também, e logo a compor. Depois que terminou a viagem com eles, eu tava namorando una chica lá de Buenos Aires e quando ela voltou pra lá, eu fiz uns trabalhos aqui no Brasil só pra ter grana pra ir e me mandar... O último foi o da Rexona pra Copa (se você morou no Brasil durante a Copa de 2018 você já deve ter visto o Cristiano e nem sabe, mas esse comercial passava toda hora antes dos jogos). Sumi de rede social e tudo, da galera do meio que conheci. Fiz outra oficina de 6 meses de clown, 3 espetáculos de Impro e trabalhei bastante com dublagem. Gostava muito, porque tinha saraus toda semana e eu morava com músicos, então sempre tinha roda de viola ou guitarreada como eles diziam."


"...O namoro não deu certo e fiquei super triste. Por isso escrevi umas 13 canções pra tentar superar e entender tudo que tava passando."


Apesar de ter sido uma conversa marjoritariamente escrita, consegui até ouvir o suspiro do Cristiano pra continuar contando.


"Depois que terminei as coisas que tinha pra fazer aqui decidi viajar de novo. O povo da dublagem não entendia como eu ia deixar tudo, sendo que tava ganhando dinheiro e fazendo dublagens de bons papéis... Mas não me importava mais esssas coisas. A partir daí comecei a viajar: eu, o violão e as aquarelas que ganhei de uma amiga. Assim viajei pro norte da Argentina. Encontrei uns amigos que conheci em Buenos Aires e acompanhei eles por um tempo, estavam tocando pelas cidades, depois eles voltaram e eu segui. Foi acabando a grana e comecei a vender as aquarelas de paisagens que ia pintando. Na maioria das vezes eu dava de presente pros amigos que fazia. Também deixei o personagem que tava sempre rindo e contando piada pra trás."


"Até aí as vezes eu pensava 'Que legal essa galera que viaja tocando nos lugares', e conheci um amigo que também tocava e começamos a cantar juntos nos bares. Eu ainda tinha vergonha de tocar sozinho. Viajamos juntos por uns 2 meses até que ele e sua companheira queriam ir para o outro lado da Bolívia e eu ia pra La Paz. Fui pra lá e comecei a fazer voluntariado num hostel. Fiquei dois meses ali. Conhecendo muita gente todo dia e tocando nos restaurantes. Eu só fazia recepção sábado e domingo e tinha o resto da semana libre pra viajar e tocar.


Às vezes o Cristiano soltava umas palavras em espanhol.


"Me convidaram pra um festival de teatro internacional. Eu não queria atuar, então só dei oficina de Impro e toquei. Nessa conheci um grupo de chilenos que viajavam em uma van pequena, nos demos bem e comecei a viajar com eles; mas em Santa Cruz de La Sierra sofremos um incêndio e queimou tudo: bonecos, violões, aquarela, roupas, documentos."


É. Quando ele mencionou a Bolívia eu já tinha ficado bem mais atenta, mas quando falou Santa Cruz de La Sierra meus olhos saltaram, não só pela menção da cidade, mas porque numa história em que eu começava idealizar sua aventura, eu não esperava ouvir sobre a desgraça de um incêndio.


Foi quando ele começou a contar a parte que apetecia sobre o noticiário...


"Voltei pra São Paulo pra refazer tudo e em um mês reencontrei esses amigos no Peru. Participamos de um festival de teatro comunitário em Lima e depois fomos pra Cusco, mas o lugar que a gente mais gostava era o Vale Sagrado. Morei em Pisac na casa de um senhor peruano, em um hostel também, que podia pagar a hospedagem com arte. Depois alugamos uma casa em cima das ruínas de Calca em Uno Urco. Foram 6 meses de Peru. Ao contrário da notícia, tínhamos visto renovado e podíamos ficar 6 meses. Custa 14 soles renovar, não teria porque estar ilegal."


Aqui já começou o tom do que ele revelaria...


"Aí com os amigos dávamos oficinas de teatro, música e dança contacto. E tocávamos sempre pelo Vale e em Cusco. Foi onde tive contato com as medicinas da floresta e andinas. O Rape, Guachuma, Ayuhasca. Bom, parte da galera foi pro Ecuador e uma amiga que descobriu que tava doente voltou pro Chile com seu companheiro. Com alguns amigos fomos fazer a caminhada de 30km até Machu Picchu. O trem é muito caro pra um mochileiro, além de que a viagem a pé é muito mais bonita. Chegamos lá e tudo era muito caro, comida, água, camping. Tocamos todos os dias por quase uma semana, mas não dava pra juntar o valor da entrada de Machu Picchu; queríamos entrar grátis como todo mochileiro faz. Éramos seis e um cara que não conhecíamos, mas estava no mesmo camping. Seguimos as indicações da galera que já tinha feito e sabíamos que se te pegassem lá dentro você só levaria uma advertência na polícia e era liberado. Entramos de madrugada, noite de lua cheia, tudo lindo, um belo nascer do sol. E esquecemos de nos esconder..."


Não sei porque, mas achei poético essa frase "esquecemos de nos esconder...".


"...Nos encontraram e aí começou o inferno. Como éramos de quatro países diferentes, Brasil, Chile, Argentina e França, nos pegaram para Cristo. Disseram que tinham cagado e derrubado uma pedra. Não nos quiseram mostrar as provas. Não podíamos dar entrevistas. Pediram suborno e, como não tínhamos pra pagar, nos 'expulsaran do país'."


"Mas a própria polícia disse que tudo era porque se tornou midiático, mas que poderíamos voltar assim que eles nos deixassem na fronteira com a Bolívia. Não voltamos, ficamos uma semana nessa entre dormir na delegacia e no prédio de Migraciones. Então fomos pra Bolívia, na Ilha do Sol. Estávamos ganhando um bom dinheiro tocando pros turistas nos restaurantes, mas nos reconheceram e tivemos que ir embora. Nessa, cruzamos todo o país pra entrar no Brasil pelo Acre, demorou só um mês pra ir fazendo grana pra viagem. No Acre nos separamos e fiquei vivendo com uma família Huni Kuin e tocando nos restaurantes de Rio Branco. Fui pra Aldeia e aí começou o Corona Vírus... Eu fiquei muito doente, não fiz exames, mas eram todo os sintomas do coronga. Então vim pra Lorena... Bom, um resumo de toda a História!"






"Aquí estávamos felizes por ver o nascer do sol sozinhos"

[Cris, 2020]






"E aqui já não estávamos felizes haha"

[Cris, 2020]






Eu ainda não havia comentado nada, mas ele achou importante já ressaltar...


"Hahahaha não costumo escrever tanto assim por rede social, mas... Quarentena, né!"


E eu com a minha falta de bom senso e imaginação borbulhando finalmente me manifestei como uma paulistana insensível "MANO!! A HISTÓRIA SÓ VAI FICANDO MELHOR DE SE SABER (com certeza não de se viver)."


Mas o Cristiano não levou por mal e continuou...


"Esses policiais não queriam ter que expulsar a gente, mas como tinha a mídia e o chefe deles tava levando uma grana, não teve jeito. Mas ficar três noites numa cela fendendo xixi e cocô... Não foi tão legal. Mas de dia até nos deixavam sair pra ir no mercado. Eu nunca imaginei que ia viver algo assim 😂. Mas as coisas vieram num crescente, porque o incêndio na Bolívia já tinha sido uma loucura, ninguém esperava poder passar por algo ainda maior na mesma viagem..."


E apesar de ter ficado extremamente entretida com a história que o Cristiano contou, com uma leve pontinha de inveja quando os visualizei na noite de lua cheia deitados no chão de Machu Picchu ou se hospedando em um hostel pagando com sua arte; eu não sou ninguém pra dizer se todo o perrengue que eles passaram valeu a pena e quando perguntei, ele hesitou. Minha empolgação dizia que sim, mas é fácil romantizar a adversidade alheia.


Mas definitivamente é uma história pra se ouvir - e ainda assim, acho que pouquíssimos a haviam escutado.


Daqui a pouco fará aniversário que o Cristiano me contou tudo isso e eu não havia a recontado porque não conseguia escrever com a mesma emoção que a ouvi. Até que precisei ir pra Lorena e ouvir em uma convesa completamente aleatória, por uma pessoa desconhecida, um "não vai fazer que nem o lorenense cagão em Machu Picchu".


A velha moralista brotou em mim:


"VOCÊ NÃO DEVIA FAZER PIADA SOBRE O QUE NÃO SABE."


Me incomodou que toda a situação vivida pelo Cristiano e seus amigos tenha se reduzido ao bordão "o lorenense cagão em Machu Picchu". Tudo isso me lembrou o quão corriqueiro é diminuirmos toda a imensidão da história de um ser humano em um só ato, um ato que às vezes nem seu é. Isso me lembrou porque essa história mexeu comigo e eu achava tão importante contá-la.


O Cristiano percorreu uma narrativa que eu tenho certeza que muitos já se imaginaram trilhando, mas que poucos tiveram coragem de realizar exatamente por imprevisibilidades como estas: uma vida livre e por muitas vezes nômade. O conheço pouco, de maneira distante, mas sempre tive afinidade. Na escola, na arte e nessa história. E hoje sou grata porque ele me permitiu conhecer o lado dele dessa notícia.


E espero de coração que ele esteja cagando e andando pra tudo isso.



Não vou negar que dei risada com esses comentários

(e estou me segurando pra não rir de novo).

Mas precisamos ser muito responsáveis com as notícias que consumimos e a forma como lidamos com as mesmas.



"Que legal essa galera que viaja tocando nos lugares"

[Cris, 2020]


Obrigada, Cristiano!

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