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UM GOLE DO UNIVERSO

em crônicas

Em 2016 coloquei como uma das metas do ano "Aprender a fazer um bom nhoque", mas foi só no final de 2018 que finalmente fiz um nhoque com cara e sabor de nhoque. Um prato que eu pensei "Eu pagaria por isso em um restaurante. Não pagaria muito caro, mas pagaria". E considerando meus talentos gastronômicos, pra mim isso foi uma baita conquista, que só foi possível porque eu me empenhei muito mais do que nos anos anteriores. Em um mês eu fiz mais nhoques (e tentativas de nhoques) do que a soma de todas as tentativas dos dois anos anteriores. Eu aprendi empiricamente que a repetição constante é um importante hábito para aprendermos a fazer algo que exige técnica, tal como escrever... Que é uma das minhas metas de 2019 :)

Foto do escritorKaren Harumi

2° Vestido

Atualizado: 21 de fev. de 2021


(continuação da crônica 1º Vestido)



Eu sempre vi as minhas irmãs com um distanciamento gigante, como se elas fossem deusas do Olimpo e eu uma mera Hércules, meio deusa, meio mé.


Eu tenho tudo pra ser como elas, toda a genética e parte do meio a meu favor, mas não sou. E não que isso seja ruim, eu as vejo de uma maneira tão inspiracional que ser meio elas já é muito.


Eu cresci pensando "Elas estão no colegial quando eu ainda nem cheguei na 5ª série".


Elas aprendiam Química, Física e Biologia, essas coisas de gente adulta e inteligente, enquanto eu aprendia Ciências. Elas eram as melhores da turma, passaram no COTEL* e COTEC**, eram populares, queridas e super altas, já tinham 1,50m! Usavam roupas descoladas, sapatos plataformas, camisas transparentes amassadas e calças jeans rasgadas, tudo junto. Tudo nelas era muito maduro e antenado, inclusive ouviam rock do mal e acordavam tarde porque estudavam de noite... Eram artistas fora da TV. Eu queria ser como elas tanto quanto eu queria ser dançarina do É o Tchan ou cantar junto com as Spice Girls.


Mas o ápice do nosso abismo veio quando elas anunciaram, na casa em que morávamos as três juntas em São Paulo, que se casariam no mesmo dia.


[Só pra esclarecer, elas informaram no mesmo dia que se casariam na mesma data]


Isso foi um tiro no meu peito.


Elas saíram cedo de casa, lá em Lorena, pra estudar em outras cidades e quando finalmente voltávamos a morar juntas...


Elas me fizeram uma palhaçada dessas.


COMO ASSIM ELAS OUSARAM ACEITAR O PEDIDO DE CASAMENTO DE QUEM ELAS AMAVAM??? UM ABSURDO.


Eu finalmente começava a me sentir adulta como elas e elas pulavam já pro próximo nível do jogo.


[Aliás, acho importante dizer que as minhas irmãs não são gêmeas. Muitas pessoas (que nunca as viram ao vivo, porque ao vivo isso é bem óbvio já que nem irmãs direito elas parecem ser) me perguntam isso quando eu falo delas. Elas possuem um ano de diferença entre si, mas sempre estudaram juntas porque a mais velha era 1 ano adiantada na escola e a do meio era 2 anos (eu falei que elas eram ótimas alunas). E o casamento junto foi só um detalhe que o Universo colocou no meio da história delas. Não é que elas gostassem de fazer tudo juntas, mas a vida sempre as manteve unidas mesmo assim.]


E pra ajudar, como elas se casariam no mesmo dia, elas deixaram para mim a difícil decisão de escolher de quem eu seria madrinha. No coração eu seria madrinha de ambas, mas na celebração eu ia ter que ir pra um dos dois lados do altar.


Toda vez que me perguntavam de quem eu seria madrinha, eu me lembrava de quando alguém vinha com o Dilema do Envenenamento na minha infância e perguntava: "Se as suas duas irmãs estivessem envenenadas e você só tivesse um antídoto, qual delas você salvaria?" e suas variações. Minhas irmãs já foram lançadas num incêndio e eu só tinha tempo de resgatar uma das duas, também já foram lançadas no mar e eu só tinha fôlego pra salvar uma delas do afogamento, já ficaram penduradas num penhasco e eu só tinha força pra segurar a mão de uma delas... E sempre com o adendo: se você tentar salvar as duas, as duas morrem.


Era uma maneira mórbida e cruel de perguntar quem eu preferia, quem eu amava mais, e eu sou incapaz de responder isso. Inclusive elas foram as primeiras pessoas a me ensinarem empiricamente que é possível amar um monte de gente, de várias formas diferentes, num mesmo tanto - pode ser que nem todos o façam, mas é possível. E mesmo sabendo que as minhas irmãs são desapegadas dessas tradições e não levariam pro pessoal qualquer lado que eu fosse do altar, responder de quem eu seria madrinha revivia em mim traumas de todas as vezes que eu chorava pra responder as perguntas de envenenamento, incêndios, afogamentos e quedas fatais visualizando na minha imaginação fértil um mundo sem elas.


Mas a solução foi bem fácil!


Eu sempre quis ser dama de honra, mas na minha infância, se as pessoas se casaram, ninguém me chamou; mas adulta, no casamento das minhas irmãs, por que não? Foi uma das minhas melhores decisões e um dos momentos mais incríveis que vivi.


Com isso resolvido, aí veio o momento do "E O VESTIDO?!"


Depois do Dilema do Envenenamento, parece uma dúvida tão bobinha. E, bom, foi mesmo.


Esse vestido foi o mais fácil de escolher entre todos e é definitivamente o meu favorito.


Eu posso estar exagerando porque a minha mente adora teatralizar momentos assim, mas eu tenho quase certeza que naquele dia eu só vi um vestido e eu já sabia que era ele (mas sendo justa, eu vi o mesmo modelo em duas cores só pra ter certeza).


Eu olhei pra ele...

E ele não olhou pra mim, porque afinal é só um vestido, mas a conexão estava ali.


A cor, o modelo, os detalhes, os brilhos, o tamanho, a sustentação e principalmente o preço...

Aquele vestido foi costurado pra mim da mesma forma que eu fui feita com muito amor pelos meus pais com as costas do tamanho exato para usá-lo e com as finanças adequadas para pagá-lo. E mais uma vez o dia foi salvo pela José Paulino***, o local onde eu comprei 71,4% dos meus vestidos de madrinha.


E a celebração, que eu tanto achei que aumentaria o cânion de distância que eu via se formar quando elas aceitaram o pedido de casamento, foi o que me aproximou ainda mais das minhas irmãs.


Ajudei na despedida de solteiro, nas lembrancinhas, na lista de música da festa, na locação do espaço, com os vestidos de noiva, com os depoimentos e apresentações... Até então eu nunca havia me sentido tão adulta quanto com essa experiência, quando me senti responsável em organizar o que um dia eu queria que fosse uma das melhores lembranças das pessoas que eu mais amo. Pouco depois eu fui morar pela primeira vez em um apartamento com o meu nome em um contrato de locação, sendo responsável pelas minhas compras no supermercado, tentando não esquecer as datas de vencimento dos boletos e forçando o meu corpo a ir no médico sozinha porque não ia ter ninguém pra me obrigar...


No final, o casamento delas foi o que me preparou para finalmente me ver como adulta e agir como tal.


Não era a nossa idade que causava a distância que eu sentia, eram os meus medos. Pra mim, era muito conveniente que elas fossem as adultas e eu sempre a irmã mais nova. Mas isso não foi algo que eu percebi na hora, enquanto vivia todas essas emoções, mas algo que só reparei muito tempo depois, quando a minha irmã mais velha se separou e veio morar um tempinho na minha casa. Não é que eu tenha ficado feliz com a separação dela, mas eu fiquei muito orgulhosa de mim mesma por ter construído um lar em que eu podia recebê-la e ampará-la e retribuir todas as vezes que ela me recebeu e amparou, pulando o abismo que eu mesma cavava.


***


E, pra não dizer que o vestido foi mero figurante na história, ele me ajudou a ter mais confiança em mim mesma também! Quando o comprei, a barra pinicava na parte de trás do meu joelho. Caaara, como aquilo me irritava! Era feito pra mim, mas nada é perfeito. Levei numa costureira especializada em vestidos de festas pra dar uma encurtada na esperança de resolver essa pinicação. Ela cobrou o mesmo preço que eu havia pago no vestido. Eu tentei barganhar, afinal me cobraram R$ 100 para imaginar, fazer o croqui, cortar os moldes, comprar os tecidos, pedrarias, costurar e bordar aquele vestido e a senhora queria R$ 100 só pra fazer uma barra, mas ela argumentou que era muito tecido e que era difícil fazer aquela barra porque precisava de muita precisão e que qualquer errinho ficava visível. E ela tinha razão...


Deu pra ver todos os erros.


Pois muito que bem, quando retirei o vestido eu só consegui pensar "EU NÃO ACREDITO QUE EU PAGUEI PRA ESSA MULHER CORTAR TUDO TORTO ESSA BARRA COM UMA TESOURA SIMPLES!"


Chorei essa história pra muita gente.


A barra ficou horrível. Estava muito torto, meio mastigada E AINDA PINICAVA ATRÁS DO JOELHO EXATAMENTE NO MESMO LUGAR DO MESMO JEITO. Tentei argumentar de novo, mas ela disse que o que ela poderia fazer era cortar mais ainda, só que com desconto, ela cobraria só R$ 50 pra arrumar a cagada que ela mesma fez. Cara, eu fiquei put* da vida por ter sido tapeada por uma senhora com cara de ser humano fofinho, mas que era na verdade uma capitalista muito bem articulada que usava sua idade e experiência para enrolar jovens inseguras.


Cheguei em casa e eu mesma fiz a barra. A senhora tinha feito um belo de um estrago. Deu um trabalhão do caramba pra ficar perfeito, retinho e bem feito - mas ficou. E eu ainda lembro da cara desaforada daquela senhora topetuda dizendo toda empinada que eu seria incapaz de fazer sozinha porque exigia muita técnica e "que bom que eu tinha levado numa costureira", "pipipi popopó", um baita dum migué...


E é pra não sentir mais a mesma raiva que eu senti com essa senhora que hoje eu levo comigo, e com esse vestido, o aprendizado de "Não vou acreditar em alguém que me desconhece (e as vezes nem as que me conhecem), quando dizem que sou incapaz de fazer algo". Muitas vezes somos capazes de realizar coisas que nem imaginamos até sermos forçados de alguma forma a fazer. E eu sei, era só uma barra, nada muito grandiôôôso, mas foi com esse singelo aprendizado que eu consegui realizar algumas coisas ao longo da minha vida com muito mais confiança e, principalmente, economia.


Eu juro que queria ter humildade, mas eu só consigo sentir orgulho de quando lembro o quanto eu fiz depois que parei de achar que eu era incapaz. Já lixei e pintei uma casa inteira, já cortei meu cabelo curto sozinha, já peguei ônibus de salto, já cozinhei um nhoque delicioso e, inclusive, já ajudei na organização da celebração de um casamento que, particularmente, foi o mais lindo que eu já vi <3



Eu ia deixar aqui só os maravilhosos vestidos de casamento das minhas irmãs,


mas de novo eu fui incapaz de escolher qual delas eu deixaria como imagem principal.

(o Dilema do Envenenamento me persegue até nas decisões mais pequenas)


Obs.: Essas fotos foram inicialmente divulgadas nas redes sociais antes do casamento, por isso a sutil adição de adereços nos vestidos


...Então segue foto do meu Vestido de Dama de Honra (ou de Madrinha Indecisa).


Um destaque especial pra barra, que eu mesma fiz, do forro e de todas as camadas do enchimento (não dá pra ver direito, mas são quatro)

ESSA FOTO É PRA VOCÊ SENHORA CHEIA DE TÉCNICA!





*COTEL é o Colégio Técnico de Lorena vinculado com, na época Faenquil, hoje USP.

** COTEC é o Colégio Técnico de Guaratinguetá, vinculado com a UNESP.

***Aliás, deixo aqui essa dica: A Rua José Paulino e o seu entorno é uma região em São Paulo com vestidos de festas bem baratos. Já vi vestido que na José Paulino custava R$ 100, sendo vendido por R$ 500 no interior e os vestidos de R$ 500, sendo vendido por R$ 2.500 (real, real, fiquei pasmada com isso).



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[ADENDO:


Obrigada às minhas irmãs por me ensinarem desde pequena sobre o amor.]

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