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UM GOLE DO UNIVERSO

em crônicas

Em 2016 coloquei como uma das metas do ano "Aprender a fazer um bom nhoque", mas foi só no final de 2018 que finalmente fiz um nhoque com cara e sabor de nhoque. Um prato que eu pensei "Eu pagaria por isso em um restaurante. Não pagaria muito caro, mas pagaria". E considerando meus talentos gastronômicos, pra mim isso foi uma baita conquista, que só foi possível porque eu me empenhei muito mais do que nos anos anteriores. Em um mês eu fiz mais nhoques (e tentativas de nhoques) do que a soma de todas as tentativas dos dois anos anteriores. Eu aprendi empiricamente que a repetição constante é um importante hábito para aprendermos a fazer algo que exige técnica, tal como escrever... Que é uma das minhas metas de 2019 :)

  • Foto do escritorKaren Harumi

Prisão Insana

Para alguns ainda poderia parecer uma menina, mas ali, sentada na areia com os pés sendo molhados de tempos em tempos pelo finalzinho de ondas já tímidas que retornavam ao mar cada vez com mais força, estava uma mulher que se sentia sozinha, mesmo com tanta gente em volta.


Seus ouvidos não escutavam nada além do barulho do mar quando uma das ondas trouxe um pequeno peixe para perto dos seus pés e não voltou mais para buscá-lo.


Então o peixe puxou um papo:


“Olá, você poderia me levar de volta ao mar, por favor?”

“Se você parar de se mexer tanto pode ser que eu consiga...”

“Perdão. É involuntário, mas quão mais rápido você me colocar na água, mais rápido irei parar de me debater. É um ciclo que você tem toda a capacidade de quebrar!”

O peixe era educado e animador para quem sentia espasmos que anunciavam a chegada da morte.

“Ok. Eu vou tentar... E vou confiar que você não irá me morder.”

“É sério que você está se gabando em voz alta da sua confiança em mim? Você que bem sabe que já comeu peixe está com medo de que eu, do tamanho do seu menor dedo, possa te morder? Devo tomar meu último fôlego para te explicar o desespero que me levou a confiar em você?”

A mulher não respondeu. Um tanto por vergonha, um tanto porque se concentrava em fazer uma pequena escavadeira com as duas mãos para puxar o punhado de areia em que o peixe estava deitado se debatendo e correr em direção ao mar.

Sem se desfazer da concha formada pelas suas mãos, ajoelhou-se e desceu os braços até a água. Viu a areia se dissipar com rapidez e o peixinho voltar a nadar e concluiu:


“Acho que deu certo.”

“Deu sim. Muito obrigado! Fico feliz em tê-la conhecido, mas espero nunca mais reencontrá-la, ao menos não em terra, talvez em mar!”

“Pois que triste fico eu com essa perspectiva. Gostei de ter a companhia de alguém hoje e ainda mais, nunca conversei com um peixe antes.”


“Poucas pessoas o fizeram.”

“Então devo aproveitar a oportunidade para tirar uma dúvida, se me permitir.”

“Acho que é o mínimo que posso fazer depois de você me salvar a vida.”


“...Como é viver preso ao mar? Pouco antes de você chegar eu me peguei pensando como deveria ser triste nadar todo o mar só para chegar aqui na orla e ver as pessoas se divertindo e não poder se juntar à elas.”

“Acho que deve ser algo parecido com o que você está sentindo, não? Você não parece estar junto à elas...”


“E não estou, mas poderia estar. Se eu quisesse. Já você não consegue ficar 2 segundos na areia sem sentir falta de ar... Está preso no mar.”


Preso mo mar?”

“Sim. Vive restrito à água, enjaulado por grades fluídas. Sabe? Não poder sentir o vento... Não poder deitar na grama... Dentre todos os animais, os peixes devem ser os mais infelizes. Não o são? Diga! Como é não poder conhecer Moscou, Kyoto, Chiang Mai, Viena, Santa Cruz de la Sierra, Berlim, Iquitos, Lorena?!”


“O que são isso?”

“São lugares incríveis que um dia pretendo visitar.”


“Você está me perguntando como é não poder ir à lugares que você também nunca foi?”

“Mas é diferente. Eu posso ir. Aliás, exatamente agora eu não posso. Mas assim que eu organizar melhor a minha agenda, juntar mais dinheiro e estiver com a vida mais estável eu com certeza visitarei ao menos alguns desses lugares... Mas você, pobrezinho, está aí, preso ao mar em que nasceu.”


“Olha... Não lhe é estranho pensar que viver no mar é uma prisão se o planeta em que estamos possui muito mais água do que terra? Diga-me, se o espaço que eu tenho para viver é tão maior e profundo quanto o seu, seria eu mesmo que estou numa prisão? Só posso supor que o seu enclausuramento em solo seco lhe causou essa insanidade egocêntrica que faz você acreditar que eu poderia ser triste e sentir falta de Kyoto quando posso me aprofundar em águas que sempre lhe serão desconhecidas.”


Apesar do peixe ter sempre mantido o mesmo tom durante toda a conversa, o mesmo não se pôde dizer da mulher...

“Que desnecessária sua agressividade! Não quis ofendê-lo. Eu estava apenas tentando ser empática ao lhe fazer essa pergunta. O que sabe você sobre a minha sanidade? Você é apenas um peixe!”


“O suficiente. Sei que você está falando comigo...”



"Ué, mas cadê o peixe?"

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