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UM GOLE DO UNIVERSO

em crônicas

Em 2016 coloquei como uma das metas do ano "Aprender a fazer um bom nhoque", mas foi só no final de 2018 que finalmente fiz um nhoque com cara e sabor de nhoque. Um prato que eu pensei "Eu pagaria por isso em um restaurante. Não pagaria muito caro, mas pagaria". E considerando meus talentos gastronômicos, pra mim isso foi uma baita conquista, que só foi possível porque eu me empenhei muito mais do que nos anos anteriores. Em um mês eu fiz mais nhoques (e tentativas de nhoques) do que a soma de todas as tentativas dos dois anos anteriores. Eu aprendi empiricamente que a repetição constante é um importante hábito para aprendermos a fazer algo que exige técnica, tal como escrever... Que é uma das minhas metas de 2019 :)

  • Foto do escritorKaren Harumi

Solidão

Sonhos da Quarentena

pt. II

(continuação da crônica Walter Loja Conveniência)

Fevereiro de 2019.


A noite anterior tinha sido bem movimentada.

Vi mais gente do que consigo lembrar.

Não sei muito bem como fui parar ali.


Um casarão branco, bem parecido com a residência da Cher em As Patricinhas de Beverly Hills e talvez isso não fosse coincidência.


Mas ao invés da escadaria no hall, tinha um escorregador imponente que terminava em uma maravilhosa piscina de celofane azul picado.


Na cozinha, uma geladeira gigantesca ABARROTADA de cerveja e todas as coisas mais saborosas do mundo, queijos, pudim, jiló...


No quarto, o paraíso continuava. Roupas e sapatos coloridos.


Eu não sabia de quem era, mas não resisti em experimentar metade das coisas. Tudo brilhava, piscava e parecia que ia pinicar, mas não pinicava. A abundância de escolha era tanta que acabei com uma bota num pé e uma sandália no outro. Era impossível escolher qual o mais bonito.


E então eu ouvi passos.


Era a culpa chegando.


Um idoso engomado apareceu. Pela roupa e pela pose, ou ele estava arrumado pra ir à Ópera ou ele era o mordomo de alguém importante.


Comecei a tirar tudo do corpo explicando que eu me empolguei, mas que eu sabia que eu estava errada e repetia versões de "Desculpa, eu não sou assim".


Foi quando ele me interrompeu educadamente dizendo que eu não precisava me sentir mal, que eu havia trabalhado muito e merecia tudo aquilo... Ele parecia pensar que eu sentia culpa por ter e não por usar. Deu a entender que era tudo meu e ainda assim eu não entendi.


Instintivamente abri o aplicativo do banco, no meu mesmo celular Samsung J5 que sempre foi a prova de que nem 1/3249872 daquilo podia ser meu. E lá estava escrito com todos os 0 possíveis "VOCÊ É RYCA".


Aquilo foi tão surreal que eu precisava contar pra alguém. Compartilhar com a minha mãe, minha família, meus amigos. Precisava exibir a minha bota e a minha sandália.


E então notei que no hall não havia porta para a rua. Desci, subi, desci, subi. Mas nada.


Sem porta, sem janela, sem ninguém. Até o mordomo sumiu por algum buraco que fui incapaz de achar.


Toda aquela alegria que eu sentia começou a virar tensão.


Eu já não sabia o que eu buscava.

Se portas.

Se janelas.

Se o mordomo.

Se qualquer pessoa.


Até que encontrei...


...Esse quarto bagunçado em que escrevo, o meu quarto de todo dia. Com dois guarda-roupas que não combinam. Com o quadro torto que pintei da Meia-Noite. Com a placa do Argentinosaurus. E com a janela para a rua...


A única de toda aquela casa.


A minha janela que dá para as árvores do bairro vizinho.


Por causa da altura, não era uma saída, mas senti certo alívio, trazia um ar de liberdade e conforto.


Olhei.


...E não havia nenhuma pessoa andando na rua. Nem umazinha. Nem 1 ser humano que fosse - nenhum, NINGUÉM.


Aquilo foi estranho, solitário quase de um jeito apocalíptico. O alívio virou medo.


Deitei na minha cama, puxei o cobertor me sentindo abraçada pela Solidão e dormi.


Foi quando o pesadelo começou...


Acordei no mesmo quarto, com a mesma janela, com o coração acelerado e a respiração ofegante de alguém que correu diversos corredores, subiu, desceu, subiu.


Cobertor no chão. Ninguém me abraçando.


Processei. Anotei. Olhei na janela e havia gente brotando da árvore.


Olhei no mesmo J5 o saldo de R$ 11,00.


Ufa.


...


Ou quase ufa.


Final de Abril de 2020.


Pandemia > Quarentena > Isolamento > Solidão.


A quarentena havia começado no mês anterior.


Eu, que sempre me achei muito independente, sentia bem forte os sintomas da abstinência social.


A noite anterior tinha sido bem movimentada.

Vi mais planilhas do que gente.

Eu sei muito bem como fui parar ali.


A Solidão voltou e eu logo a reconheci.


Tinha em mim uma sensação de "Já vivi isso antes".


Olhei pela janela e lá estavam as árvores, o semáforo, mas nem uma pessoa.


Pura coincidência, claro.

Olhei de novo.


Ainda ninguém.


...Mas eu sabia que nos outros dias daquela mesma época uma ou outra pessoa sempre passava por ali. Aquele bairro estava longe de ser conhecido por respeitar a quarentena.


Foi só naquele momente que não tinha uma alma viva.


Déjà-vu.

Falha na Matrix.

Precisava registrar isso e encontrei as minhas primeiras anotações dessa mesma sensação - estava tudo ali, um sonho que eu nunca quis realizar:


"20 de Fevereiro de 2019 [...] Foi literalmente um pesadelo imaginar um mundo onde não há uma só pessoa, nem mesmo só passando do outro lado da rua."


...


Li tudo sem o conforto que antes eu tinha de pensar que aquilo era irreal.


Sentada na cama com a geladeira abarrotada de queijos, pudim, jiló e cerveja. Sem nenhum mordomo, mas com um estoque robusto de papel higiênico Neve. Trancada por portas que eu não podia abrir. Ao lado de sandálias, botas e todas as coisas brilhosas que consegui comprar online com o desconto pandemia. E a janela pra rua vazia...


Fugi tanto da Solidão e hoje é ela quem mais me faz companhia.



Será que é verdade que quando mentalizamos muito um medo, nós o atraímos?


Será que o meu medo criou Covid-19?


Será que eu previ a pandemia?


SERÁ QUE EU TAVA FICANDO MALUCA COM POUCO MAIS DE UM MÊS DE QUARENTENA???


(a pergunta é retórica)

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