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UM GOLE DO UNIVERSO

em crônicas

Em 2016 coloquei como uma das metas do ano "Aprender a fazer um bom nhoque", mas foi só no final de 2018 que finalmente fiz um nhoque com cara e sabor de nhoque. Um prato que eu pensei "Eu pagaria por isso em um restaurante. Não pagaria muito caro, mas pagaria". E considerando meus talentos gastronômicos, pra mim isso foi uma baita conquista, que só foi possível porque eu me empenhei muito mais do que nos anos anteriores. Em um mês eu fiz mais nhoques (e tentativas de nhoques) do que a soma de todas as tentativas dos dois anos anteriores. Eu aprendi empiricamente que a repetição constante é um importante hábito para aprendermos a fazer algo que exige técnica, tal como escrever... Que é uma das minhas metas de 2019 :)

Foto do escritorKaren Harumi

Casa da Lúcida

Atualizado: 17 de nov. de 2020

Eu sou uma pessoa que gosta de contar muitas histórias.


Me sinto privilegiada por vivê-las e quase na obrigação de compartilhá-las.


A maioria são histórias bem fofas, na verdade. Outras só acho mesmo engraçadas, mas algumas... Bom, algumas levam um tempo pra eu perceber que além de não possuírem graça alguma, eu me sinto um bocado envergonhada.


Uma delas é uma história que vivi na Casa da Luz.


Eu caí de paraquedas numa festa que se me perguntarem eu nem tenho ideia de qual era.


Havia ido com um amigo que eu não via há eras e me mandou uma mensagem inesperada. Fui no impulso... Se eu soubesse que eu estava mal na época muita coisa teria sido diferente. Mas eu não sabia, eu achava que estava normal. Mas eu não estava nos dias mais felizes da minha vida mesmo que eu não quisesse admitir.


Antes ficamos num bar e bebemos bastante, acho que inclusive passamos em outro bar de uma amiga deste meu amigo. Mas posso estar confundindo os dias. Sei que bebi bastante antes de chegar na festa.


Lá, pouco depois da entrada, vi um grupo de meninas que chamavam MUITO a atenção, todas eram altas, magras, cara de casting do America's Next Top Model. Todas altas, magras (eu já disse isso?) com cara de "To nem aí pro mundo", com 0 maquiagem porque claramente já usavam sempre e estar com a cara limpa era o especial pro seu dia-a-dia. Cabelo natural, comprido, presos em coques, sem chapinha, sem babyliss, sem franja mal cortada em casa como era o meu caso.


Passou.


Muita coisa aconteceu.


Nossa, muita mesmo.


Aquela noite durou uns 5 dias.


E em um certo momento, eu e a minha mochila (pois é, eu estava de mochila nesta balada, de tão despreparada que eu estava para a situação - COM ELA NA FRENTE, ABRAÇADA, pra ninguém me roubar, pois veja bem, esse foi um ano em que eu havia sido roubada 5 vezes, mas até esse dia haviam sido apenas 3 - e talvez por eu ter abraçado a mochila é que não foram mais...) estávamos dançando na pista quando uma das meninas do meu casting mental do America's Next Top Model, que dançava ao meu lado, me olhou.


Isso foi o suficiente.


Ela me olhou e eu entendi exatamente o que ela queria.


Eu sorri.


Ela sorriu.


Começamos a dançar juntas e de repente a música da Katy Perry estava tocando na minha cabeça sobrepondo algum som que tocava no ambiente. Ela realmente tinha gosto de brilho labial (se de cereja ou morango eu não sei se tinha capacidade de diferenciar) - pode ser que, inclusive, o gosto fosse muito mais do meu próprio brilho labial do que o do brilho labial que ela não parecia usar.


Não foi algo profundo, conversamos pouquíssimas coisas, da qual eu não lembro de nada específico, mas lembro que a considerei super fofa e engraçada. Por alguns segundos (talvez minutos) eu não via mais nada nem ninguém até a minha bexiga berrar "SE VOCÊ NÃO FOR NO BANHEIRO AGORA EU VOU SOLTAR OS LÍQUIDOS AQUI MESMO". Só consegui pensar "ainda bem que é a bexiga e não o intestino" e sumi tão rápido quanto a sensação veio.


Ao voltar pra pista, de longe, mesmo míope e com o brilho de luzes mais agitadas do que as pessoas do ambiente, eu vi.


Ela me olhou de novo.


Mais uma vez não precisou dizer nada, eu já sabia só de olhar. Olho no olho. E CARACA QUE OLHO. Adoro esse tipo de comunicação. Era intenso, sucinto, prático, rápido e extremamente eficiente.


Na hora eu pensei "não tinha reparado que o olho dela parece mais claro, antes parecia tão escuro" - mas eu penso isso com frequência mesmo sobre pessoas que eu estou acostumada a ver os olhos há eras. Minha irmã mesmo eu notei há pouco tempo que o olho dela não é um castanho tão escuro quanto o meu. Eu me atento tanto ao olhar, que raramente me toco sobre as características do olho.


Não me julguei. Com tanta luz, na Casa da Luz, quem é que ia conseguir distinguir a cor dos olhos de alguém?


Foi incrível, mas o gosto de brilho labial não estava ali, provavelmente estava em algum copo das cervejas que bebíamos.


Ficamos ali uns dois dias nesse momento.


Eu estava feliz, pensando no quão improvável era tudo aquilo que estávamos vivendo.


Até que, pegando um ar e voltando a admirar o olho alheio eu percebi uma vibração intensa na minha direção, vinda pela minha direita. Tudo foi bem rápido. Um olho escuro e profundo me olhava de um jeito nada galanteador. Nada fofo. Na verdade bem decepcionado.


E então eu notei: a menina com quem eu estava era bem diferente da que eu tinha estado pouco antes de ir no banheiro.


Ambas eram altas, magras, com aquele cabelo meio loiro, meio castanho, meio eu não tenho certeza a cor e com um coque alto, como elas, bagunçado e presos sem firmeza. Mas os olhos... Totalmente diferentes.


Uma terceira menina veio me dar a dica:


"Você é bem escrota."


Dentro dos 5 dias que duraram aquela noite eu demorei 2 segundos pra me tocar o que havia acontecido.


A que estava decepcionada, com o mesmo olhar que antes havia me dito tanta coisa bacana, agora dizia "Nem chegue perto".


A que não estava decepcionada, mas também não sei se estava entendendo o que havia acontecido (muito porém acredito que sim, porque eram do mesmo grupo) perguntou "Tá tudo bem?".


E eu fui sincera.

Ó o erro.

Tato nenhum.

Soltei de um jeito ingênuo, mas ainda cruel um "Desculpa, eu não tinha percebido que você era outra pessoa. Jurava que você era ela!"


E aquele olho claro que há tão pouco tempo antes eu admirava me disse "MORRA!".


E eu voltei para o grupo dos amigos do meu amigo que mesmo de longe já haviam percebido o que havia acontecido. Lembro que perguntaram "Mas você não tinha notado que era outra menina?". Não acreditaram quando eu disse que não. Tentei fingir que não liguei. Na hora, na verdade eu estava tão aleatória que eu não me lembro mesmo de ter ligado. Pensei "Poxa vida, acontece". Eu até ri.


E desde então contei essa história algumas vezes rindo de como a minha miopia é danada.

De como algumas modelos são mais iguais que nós, asiáticos.

De como eu nunca entendi porque a segunda menina ficou chateada. Pois veja bem, eu entendo a primeira ter ficado triste, eu fiquei com a amiga dela na frente dela. Mas a segunda, poxa, eu havia sido sincera e eu havia começado a frase com "Desculpa...".


Não é que eu não a compreendesse de fato. Acho que eu nunca parei pra realmente tentar compreendê-la.

Faz um tempo que eu me toquei que a situação não foi bacana.

Nem como uma, nem com outra.

Mas como foi algo tão rápido, tão aleatório e improvável de acontecer de novo, deixava esse assunto só pra momentos extremamentes específicos e contava com certo humor que hoje já não sei se é tão apropriado.


E mais de três anos depois eu tive quase a certeza que a coincidência me fez trombar com uma delas de uma maneira bem aleatória.


Sendo beeem sincera, eu não lembro direito da cara de nenhuma da duas. Pra mim, era mesmo até então algo muito genérico, eu não lembro de nenhuma caracterísitca marcante: sobrancelha, queixo, nariz... Talvez se eu fosse lembrar seria do olhar. Mas ainda assim alguma coisa me diz que é, sim, uma delas.


Não tenho ideia. Não tive coragem de perguntar "E aí, você já foi na Casa da Luz com um grupo de amigas e uma menina baixinha com a franja super torta foi babaca com você e a sua amiga?".


E que soberba a minha achar que ela se lembraria mais do que eu desse dia.

Que se lembraria da minha franja.


Eu achei que nunca mais veria nenhuma delas, e mesmo que realmente eu não as veja, que essa menina que olhei esses dias não seja a menina que olhei por alguns minutos naquele dia, foi realmente estúpido pensar que eu poderia ser babaca sem me lembrar aleatoriamente algum dia no futuro sem culpa.


E caso ela seja ela, AÍ QUE EU NÃO QUERO MESMO QUE ELA SAIBA QUE EU SOU EU.

Por que é isso...


A culpa não é algo que sentimos só por ferir o outro, mas também por perceber que fomos muito menos do que poderíamos ter sido com alguém.


Racionalmente, certeza que hoje ambas seguem a vida normalmente sem que isso (se não em quase nada, no máximo em muito pouco) tenha afetado o restante dos seus dias. Fui a figurante 1.572 na vida delas. Mas eu sou protagonista na minha e continua sendo decepcionante ver que eu tratei alguém de maneira insensível e nem me senti mal por me confortar com a ideia de que nunca mais veria essas pessoas.


Exatamente agora, pensando em algumas coisas aqui com o pouquinho que eu lembro, acho que na verdade ela não é ela. Acho que ela só resgatou essa culpa em mim. Mas claramente não perguntei para ter a certeza, porque morro de medo de que se for realmente ela eu não tenha maturidade o suficiente pra lidar com isso sem querer me justificar.


Mas é.


...A verdade é que ninguém está imune de ser babaca.


Registro do exato momento em que eu percebi o que eu havia feito naquele dia

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