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UM GOLE DO UNIVERSO

em crônicas

Em 2016 coloquei como uma das metas do ano "Aprender a fazer um bom nhoque", mas foi só no final de 2018 que finalmente fiz um nhoque com cara e sabor de nhoque. Um prato que eu pensei "Eu pagaria por isso em um restaurante. Não pagaria muito caro, mas pagaria". E considerando meus talentos gastronômicos, pra mim isso foi uma baita conquista, que só foi possível porque eu me empenhei muito mais do que nos anos anteriores. Em um mês eu fiz mais nhoques (e tentativas de nhoques) do que a soma de todas as tentativas dos dois anos anteriores. Eu aprendi empiricamente que a repetição constante é um importante hábito para aprendermos a fazer algo que exige técnica, tal como escrever... Que é uma das minhas metas de 2019 :)

Foto do escritorKaren Harumi

Karen Kakumi

Atualizado: 18 de dez. de 2020

Já era quase Dezembro do ano passado, 2019, quando à convite da minha amiga Jaque eu fui num evento social de divulgação da Astrolink, um site e aplicativo de astrologia em que ela trabalha.


O evento foi aqui em São Paulo, mas ela mora no interior e não pôde vir, então eu marquei presença por ela e levei comigo outra amiga, a Niq.


Lá uma taróloga me atendeu. Era um tarot express gratuito, quase um Mc Donald's das energias. Era mais pra gente conhecer um pouco desse universo. Você se inscrevia e aguardava o atendimento com direito à uma pergunta às cartas:


"Terei estabilidade profissional nos próximos 6 meses?"


Haviam nos dado a dica que perguntas com limite de tempo costumavam ter respostas mais acertivas. Então eu disse o meu nome completo e ela fez a pergunta em voz alta enquanto embaralhava...


"A Karen Kakumi vai ter estabilidade profissional dos próximos 6 meses?"


Eu não queria cortar as vibrações e esperei ela terminar ali a mentalização pra falar "Harumi..."


"Oi?"


"Meu nome é Harumi, Karen Harumi..."


"Isso..."


"É que você falou Kaku..."


"É. A resposta é bem clara. As cartas dizem que 'Não'."


"OI???"


"É. Não vejo estabilidade profissional em 2020..."


"2020 INTEIRO OU SÓ OS PRÓXIMOS 6 MESES?"


"Olha. Deixa eu puxar aqui um esclarecimento e... É. Tá vendo essa carta aqui? Aqui mostra que 2020 é um ano pra relaxar, se divertir, dar um tempo de estar sempre focada no trabalho. Fazer mais coisas pra você. Focar no seu corpo. Na sua mente. Aprender a viver com pouco e dar mais valor pras relações próximas..."


"Mas isso aí já foi meu ano de 2019 todo... 2020 Não pode ser igual! Dois anos assim eu vou morrer de fome ou assassinada por dívidas..."


"Essa carta me diz que você está numa fase muito workaholic, precisa focar nos amigos, na sua vida pessoal, a mensagem é clara. Trabalho não é tudo na vida..."


Eu estava disposta a me identificar com quase qualquer coisa que ela dissesse. Eu sou dessas que acho que todas as músicas lançadas no mundo são sobre mim, como se eu vivesse num Show de Truman só pra inspirar artistas. Eu consigo me identificar até com letras de músicas do É o Tchan, mas estava difícil me reconhecer no que ela dizia


"Tem algo errado. Eu, workaholic, precisando dar mais atenção pra vida social? Não conheço uma pessoa que concordaria com isso. Pergunta pra minha amiga ali, EU SAIO QUASE TODO DIA, não tem como eu dar mais atenção pra isso!"


"Mas vida social não é só sair... Aqui fala de uma vida social de qualidade. De tranquilidade."


"Pergunta aí pras cartas então como é que se fica tranquila com o juros do cartão rodando?"


"..."


"Será que não tá dizendo o inverso? Que eu tenho que parar de pensar NA VIDA SOCIAL e focar mais no TRABALHO?"


"As cartas não mentem."


"Não disse que são mentirosas... Mas talvez estejam um pouco confusas. Eu perguntei sobre trabalho exatamente porque é a área da minha vida mais abandonada."


"Eu sinto muito se isso não era o que você desejava ouvir... Eu sinto mesmo, mas você poderia se levantar, por favor? Pode vir o próximo..."


Veja bem, não perguntei se eu vou ficar rica ou ganhar muito dinheiro, não me considero muito gananciosa e todo dia tento ser menos materialista. Não nego que eu ainda sou bem consumista, e quando vejo uma blusinha que eu paquerei finalmente com 1% de desconto eu já acho que é um sinal do Universo e passo o cartão pensando "EU PRECISO MUITO DISSO". Mas veja, eu tinha expectativas tão baixas na área profissional que eu nem perguntei se eu ia ter um trabalho decente, com boa remuneração, por já achar que a resposta seria não...


Perguntei sobre estabilidade exatamente porque era algo subjetivo.


"Talvez eu não consiga algo que pague muito bem,

mas quem sabe eu consiga aprender a viver com menos ainda, né?"


Eu nem fazia questão de ter poupança, ações, aplicações, dinheiro embaixo do colchão.

Só não queria continuar a vida equilibrando dívidas.

Tinha uma leve expectativa que ela diria que depois de tanto tempo de vacas magras, uma ou outra engordaria.


Minha esperança era que a leitura dela fosse pra alguma Karen Kakumi perdida no mundo e que eu só tive a má sorte de escutar no seu lugar.


Mas quando Janeiro chegou a taróloga parecia cada vez mais certa, até as portas que estavam abertas se fecharam. Dois dos trabalhos mais "estáveis" que eu tinha, incluindo um que me salvava de tempos em tempos nos últimos 9 anos, encerrou. Isso antes de pandemia.


...Quando tive a notícia que as minhas antigas fontes de renda estavam secas eu lembrei na hora da taróloga. FILHA DA MÃE!


Pessoas responsáveis, conscientes, com o emocional bem trabalhado, economizariam.

Eu preferi chutar o pau da barraca.


"Ok. Então vai ser assim Universo?? Nada de trabalho? É pra eu aprender a relaxar e me divertir em 2020? PODE DEIXAR!"


Saí gastando o que eu não tinha e aceitando todo e qualquer convite pra fazer qualquer coisa.

Na verdade não é nada muito fora do que eu já fiz antes, mas agora tinha um tom de afronta de fundo.


Uma dessas atividades sociais era encontrar os amigos com quem trabalhei em Salvador anos atrás. Acabou não rolando, mas voltei a conversar frequentemente com o Gui, um grande amigo que eu não via desde maio, e ele jogou a frase:


"Amiga, abriu uma vaga na minha empresa. Como tá seu momento profissional?

Tá afim de se jogar no corporativo de novo?"


Nesse ponto da vida eu já tinha ido em tantas entrevistas que não deram em nada, que pra mim isso nem parecia uma porta se abrindo. Eu enxergava só mais um muro com uma porta pintada.


Ir em entrevistas era como fazer exercícios de manhã: não que eu visse resultados, mas ao menos eu ficava com a consciência tranquila de que pelo menos eu estava tentando.


E então foi tudo muito dinâmico.


Em poucos dias fui para a entrevista em um café.


Duas mulheres jovens, bonitas, descoladas, de tênis e sorrisos maravilhosos, personificadas direto do Pinterest chegaram e a entrevista começou. A admiração foi instantânea. Mulher no comando é sempre inspirador, ainda mais duas! Divertidas, responsáveis, engraçadas e ainda comentaram que ambas tinham filhos pequenos... A entrevista foi muito melhor do que eu poderia ter imaginado, uma vez que até então eu não havia imaginado nada para nem criar expectativas. E então...


Dois dias depois eu estava na empresa.


Duzentos dias depois, ainda estou na empresa.

(amém)


No meu primeiro dia de trabalho, entre tantas alegrias, eu consegui encontrar um espaço na minha cabeça pra cogitar procurar a taróloga que havia dito que 2020 não era o ano em que eu conseguiria estabilidade profissional, só pra esfregar na cara dela o meu salto corporativo. Eu fiquei esnobe bem rapidinho. O que me barrou foi pensar "Não, melhor esperar os 3 meses só pra ter certeza...". Esperei. Mas trabalhei tanto nesse meio tempo que até esqueci... E foi só bem recentemente que me lembrei disso.


E CARA, SE PÁ ELA TAVA CERTA!

Pois é.


Estou muito feliz por trabalhar.

Por pagar minhas contas em dia.

Por resgatar a minha auto-estima profissional.

Por ter uma equipe com quem aprendo diariamente.

Por me sentir mais madura e confiante das minhas decisões.

Por aprimorar o inglês, o espanhol, minhas habilidades de persuasão, os meus conhecimentos culturais, a minha organização do tempo e ATÉ DA CAIXA DE EMAILS.


Eu realmente tenho um trabalho decente, com boa remuneração.


Um cargo que eu mal sei traduzir ou explicar!


Mas é verdade, a taróloga tinha razão: esse ainda não é um ano em que eu posso dizer que a minha vida profissional está estável.


Tá tudo, menos isso.


Dinâmica, intensa e até que bem duradoura dada as circunstâncias, mas não estável.


Todo dia eu tenho medo.

Medo por mim, medo pelos meus familiares, medo pelos meus amigos, medo pelos meus colegas, medo até pelos desconhecidos.


Nos primeiros três meses eu não me sentia estável, afinal eu ainda estava no período de experiência, e logo em seguida começou a pandemia. E será que dá para se sentir estável num cenário assim?


E o pior foi que, querendo dar valor pelo meu trabalho em tempos tão incertos, talvez eu tenha mesmo me tornado workaholic.


Eu só falo disso.


Eu só faço isso.


Acordo e trabalho...

...Durmo...

...E ENTÃO SONHO COM O TRABALHO!


É como se a minha mente quisesse compensar todo o tempo que fiquei sem trabalhar só pensando nisso.


Talvez Karen Kakumi seja a minha personalidade que trabalha compulsivamente todo dia e que até então eu nem sabia que existia.


Falei mal da mulher, mas o que a taróloga disse bateu certinho de uma forma bem inimaginável!


E to aqui... Pensando em mim agora. Pensando em mim no ano passado. Pensando nas pessoas que foram desligadas, nas pessoas que tiveram o salário cortado, nas que nunca nem conseguiram ter um emprego em que se sintam valorizadas ou minimamente tendo a sua existência reconhecida...


Achei por um bom tempo que o segredo da estabilidade profissional era ter um bom emprego, mas e se na verdade o segredo é só "não ter"? Não ter expectativas, não ter apego, não ter medo?


Eu já sabia sem saber: estabilidade profissional realmente é algo subjetivo, foi uma ilusão que criei. Talvez as pessoas nunca se sintam estáveis enquanto acreditarem ter algo a perder.


You better work bitch

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