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UM GOLE DO UNIVERSO

em crônicas

Em 2016 coloquei como uma das metas do ano "Aprender a fazer um bom nhoque", mas foi só no final de 2018 que finalmente fiz um nhoque com cara e sabor de nhoque. Um prato que eu pensei "Eu pagaria por isso em um restaurante. Não pagaria muito caro, mas pagaria". E considerando meus talentos gastronômicos, pra mim isso foi uma baita conquista, que só foi possível porque eu me empenhei muito mais do que nos anos anteriores. Em um mês eu fiz mais nhoques (e tentativas de nhoques) do que a soma de todas as tentativas dos dois anos anteriores. Eu aprendi empiricamente que a repetição constante é um importante hábito para aprendermos a fazer algo que exige técnica, tal como escrever... Que é uma das minhas metas de 2019 :)

  • Foto do escritorKaren Harumi

What Becomes of the Brokenhearted

Atualizado: 27 de dez. de 2021

Eu estava com o coração partido.


Eu havia visto a pessoa que eu mais gostava com a pessoa que ela mais gostava.


E veja bem, o ruim não é a pessoa não estar com você. É que, como já me disseram uma vez, o mais difícil é você querer ficar feliz pela outra pessoa, mas não conseguir não ficar triste por si.


Pelo menos foi o que aconteceu comigo.


Em todo o momento eu dei meu melhor, mas durante o processo eu perdi a fome, eu perdi um pouco da positividade, eu perdi um bom tanto da minha opinião própria e perdi muito do meu raciocínio - pensar, que é algo natural e que sempre reclamam que eu faço muito, era algo que eu simplesmente não estava conseguindo fazer, mas não de uma forma meditativa, mas de uma forma caótica que mistura tudo o que já aconteceu com o que está acontecendo ali na hora e troca todas as palavras que saem da sua boca.


Pois bem, nada é eterno e voltei para casa.


Bateu uma solidão imensa.


Minhas duas gatinhas estavam na hora mais alerta delas, em que elas ficam correndo pra lá e pra cá e nada as consegue parar...

Minha irmã não estava em casa...

Meus amigos e amigas estavam ocupados...


E eu só queria alguém pra abraçar.


Foi quando uma voz veio lá do outro lado da casa:


"Quem chegou aí?"

"Eu, pai."

"Chegou sozinha? E a sua irmã?"

"Saiu com o pessoal do trabalho."


Foi ele berrando do quarto dele lá no fundo e eu berrando do meu.


Pra muita gente seria natural simplesmente ir atrás do seu pai para abraçá-lo quando se sente sozinho, mas pra mim levou um tempo pro tico falar com o teco e concluir "Não custa tentar...".


Eu fui até o corredor perto do quarto dele e perguntei:


"Pai? O senhor já teve o coração partido?"

"Como assim?"

"Coração partido, ué. Gostar de alguém que não gosta de você..."


Ele não respondeu.


"Acho que estou triste, pai, e queria saber como não me sentir assim. Como faço, papai?"

Apesar de chamar meu pai de "papai", eu já tenho quase 30 anos* e muito provavelmente com 90 anos continuarei a chamá-lo assim, pelo simples fato que eu passei quase outros 20 anos dizendo isso só para um telefone e descobri um certo prazer em simplesmente dizer essas palavras olhando pra ele, mesmo adulta.


Levou alguns minutos pra ele sair do quarto com o cabelo cheio de tinta.


Foi uma cena que me fez rir um pouco, ele com aquela cara séria, prestes a dar um sermão vestindo uma touca de tinta.


Isso tornou mais fácil pra mim conseguir ouví-lo.


"Tempo."

"Tempo..."

Não era muito novidade, mas confesso que não era o que eu esperava de resposta.

"É. Tempo, Haruminha. O tempo cura tudo, nos faz ver as coisas de forma diferente. Mas o tempo não te deve nada e por isso ele passa no tempo que ele quiser."

"Sim..."


"E trabalho, também."

Essa era novidade.

"Trabalho?"

"É, trabalho. Ninguém gosta de uma pessoa que não trabalha e eu tenho certeza que você jamais iria gostar de alguém que não trabalha..." Havia uma ironia bem grande na frase que ele disse, mas não achei que seria apropriado falar.

"Trabalho distrai a gente. Trabalho traz dinheiro pra gente fazer o que quiser. Trabalho não deixa você ficar com a mente parada pensando besteira. Trabalho traz sentido na vida, fortalece valores."

Parece ter muito sentido, mas eu recentemente tinha largado o trabalho exatamente porque não estava me trazendo nada disso.


Ele não disse mais nada.

Levantei do chão e fui para o meu quarto.


Tentei ler, tentei escrever e tive a pior ideia de todas: tentar meditar. Parece que quão menos eu queria pensar em algo, mais isso se reforçava na minha mente.

Já haviam me ensinado que você não pode lutar com um pensamento, mas essa é uma arte que eu ainda não consegui dominar.


Foi aí que meu pai reapareceu, agora com o cabelo lavado, no meu quarto.


"Harumi, eu vou te ajudar, mas você vai precisar ouvir tudo."

"Pode falar, papai."

"Yeu tenho um monte de coisa pra dizer e você precisar prestar atenção, tudo bem?"

"Sim."


E então ele falou um bilhão de coisas. Começou dizendo que todo mundo já teve o coração partido, mas que não podemos ficar parado, que na verdade é quando mais precisamos nos mexer. Sair, fazer coisas, estudar, não deixar nem a mente nem o corpo parar. Falou que relacionamentos são como trabalho: quando estamos namorando parece que surge gente da grama, assim como quando estamos trabalhando é mais fácil conseguirmos outras propostas de emprego. E o inverso rola também, quando não estamos namorando, assim como quando não estamos trabalhando, há uma tendência de amores e empregadores não nos valorizarem. Há um espírito competitivo na sociedade que relaciona as suas ligações amorosas e empregatícias com o quão desejável você deve ser.


Até aí eu estava entendendo, e então ele começou a falar das gatinhas, da minha mãe trazer chá nos nossos quartos quando nos visita, dos dias que não lavei louça, de eu não comer calabresa, de quando eu saía muito de casa, de quando eu não saía nunca de casa, sobre cabelo, o meu o dele e até de gente que eu não conhecia e contou algumas histórias que viveu no Japão - o quanto foi duro e que ele precisou ser firme. Contou também de um terremoto em que achou que não sobreviveria...


"As coisas na vida são que nem aquele terremoto. Foi horrível, chacoalhava tudo, como se você estivesse no topo de uma árvore sendo balançada por um urso. Não tem onde segurar, não tem pra quem pedir ajudar, só dá pra esperar o tempo passar e aguentar firme enquanto isso... Mas depois disso, nenhum outro terremoto me assustou mais. Tremia um pouquinho e às vezes yeu nem sentia, só sabia porque saía em algum jornal ou coisa assim."


Ele também falou muito de Deus.


Verdade é que, por quase 2h, eu fiquei me perguntando qual a relação das coisas que meu pai estava falando. Às vezes até ria um pouquinho dentro de mim, como quando ele se perguntou indignado "Quando que eu ia imaginar um dia ter uma filha com o cabelo verde alface?".


Por fim ele perguntou "Você prestou atenção, Haruminha? Você entendeu o que eu falei?"


"Sim, pai."


"Então comenta, estamos conversando, pode falar também."


"Acho que o senhor tem razão em muita coisa, papai."


"Yeu não tenho razão de nada. Yeu sou só seu pai, yeu não sei nada do mundo, só posso contar de como tudo foi pra mim. Tudo que yeu quero é só deixar você um pouco mais feliz, se yeu conseguir, yeu fiz direito. Me dói muito quando yeu vejo você e sua irmãs tristes e não posso fazer nada. Yeu sou pai, parece que eu não percebo, mas eu vejo tudo, só que você não gosta de ouvir, né? Fiquei feliz que você veio perguntar pra mim porque agora pude falar. Yeu sei que falei bastante, sei que você não vai conseguir entender tudo que yeu disse, mas se conseguir entender um pouquinho então yeu to fazendo meu papel de pai de tentar ensinar o que yeu aprendi para as minhas filhas."


Ele sorriu e eu sorri também. A diferença é que ele mostrou os dentes e eu mostrei, finalmente as minhas lágrimas, que queriam há muito tempo sair, mas que eu não queria deixá-lo ver.

"Pode chorar bastante, chora mesmo. Não é bom deixar nenhuma lágrima dentro da gente. Mas depois que passar, não pensa mais nisso."


Ele se despediu e eu fui atrás dele.


Finalmente pedi um abraço.


De novo, pra muitas pessoas isso seria bem natural, não ia nem precisar ter a parte do "pedir" mas meu pai, já no corredor, respondeu.


"Isso, isso."


"Isso? ISSO? Como assim? Oxi! Eu pedi um abraço, pai!" Falei rindo porque achava que ele não havia me entendido direito.


"Isso. Muitos abraços."


"Pai, me abraça de verdade. Não to pedindo votos de abraços, to pedindo abraaaaço, assim ó..."


E então eu o abracei e ficamos assim por muito tempo.


E vai parecer clichê, mas eu me senti muito amada e me trouxe ânimo, mesmo que agora sim eu estivesse chorando 3x mais. O corredor em que nos abraçamos estava escuro, a lâmpada não estava acesa e já era noite, e parece que isso tornou mais fácil sentir o momento.


Ele saiu e antes de sumir pela porta em direção à cozinha, falou:


"...Yeu sei que falei um monte de coisa, que parece tudo nada a ver. Sem sentido. Mas eu só tava querendo te distrair, fazer você pensar em outras coisas. Quando se tá com o coração partido é muito difícil não pensar nisso, na tristeza, a gente perde a vontade de tudo, a gente esquece muita coisa, mas aí que é importante a gente se esforçar pra lembrar de todo o resto. É difícil, mas tenta distrair. Eu tentei ajudar um pouquinho."


E foi assim, sem nada dito diretamente, que eu percebi que aquele conhecimento não veio do nada, não veio de livros nem de nenhuma outra fonte de informação que não o próprio coração.


Um coração que já foi partido.





♬ "What becomes of the broken-hearted Who had love that's now departed? I know I've got to find Some kind of peace of mind Help me" ♬


Jimmy Ruffin, 1966





*Isso foi originalmente escrito quando eu ainda tinha "quase 30 anos", hoje em dia já ultrapassei essa idade.

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