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UM GOLE DO UNIVERSO

em crônicas

Em 2016 coloquei como uma das metas do ano "Aprender a fazer um bom nhoque", mas foi só no final de 2018 que finalmente fiz um nhoque com cara e sabor de nhoque. Um prato que eu pensei "Eu pagaria por isso em um restaurante. Não pagaria muito caro, mas pagaria". E considerando meus talentos gastronômicos, pra mim isso foi uma baita conquista, que só foi possível porque eu me empenhei muito mais do que nos anos anteriores. Em um mês eu fiz mais nhoques (e tentativas de nhoques) do que a soma de todas as tentativas dos dois anos anteriores. Eu aprendi empiricamente que a repetição constante é um importante hábito para aprendermos a fazer algo que exige técnica, tal como escrever... Que é uma das minhas metas de 2019 :)

Foto do escritorKaren Harumi

O Ataque Surpresa

Sentada com as pernas cruzadas no alto da beliche que me descansou por tanto tempo, eu sabia que a rotina nos foi exigida em todos os nossos dias só para ser quebrada hoje. Foram meses de planejamento e treinamento para que o nosso corpo começasse a fazer sozinho, inconscientemente, todas as ações necessárias, enquanto a mente se mantinha atenta e afiada.


No nosso quarto, todos conversavam de suas camas, entre dez a quinze homens falavam com empolgação sobre como agiriam, brincavam sobre o heroísmo que humildemente aceitariam para a a sua personalidade. Eu era a única que ainda não havia começado a me vestir, seguia parada, talvez eu não conseguisse, mesmo depois de tanto tempo, desassociar o corpo da mente. E a mente não estava ali para ajudar o corpo a se arrumar.


Dois dos meninos tinham o meu coração. Eram os meus melhores amigos, eram eles que me animavam nos dias que me sentia fraca, diminuída ou insuficiente. Eram eles que me lembravam que eu não estava ali em vão. Era a eles que eu constantemente demonstrava o meu afeto e carinho, que eu admirava como irmãos.


Tive dois minutos para me vestir. Não era nada muito complexo, era o mesmo uniforme de sempre, prata, bonito, confortável - daria uma ótima fantasia de carnaval, principalmente para os dias chuvosos, já que era impermeável. Não me atrasei. Nunca me atrasei. Mas o fato de eu sempre deixar tudo para os últimos minutos me renderam essa fama.


Seguimos cada um para a sua aeronave, eram dois em cada uma.


...Ainda lembro do primeiro dia de treinamento, sempre fomos um trio unido e como eu era menosprezada pelo restante do meninos, eles se prontificaram a ficar comigo; mas fui incapaz de escolher. Os deixei juntos e fiz dupla com outro colega, era o mais novo de todo o grupo, ninguém nos queria e isso nos unia.


Era um passado distante, mas sempre que eu entrava no caça eu me lembrava da jornada até ali. Subir na aeronave sempre evocava em mim a nostalgia da sensação de conquista da primeira vez que o fiz. Meu colega já estava posicionado, aguardando meu olhar distante voltar a focar no painel. Ele já havia se acostumado, era quase um ritual nosso. Ele esperava alguns segundos e falava com animação "Estamos prontos pra arrasar!" e então a nuvem de lembranças se dissipava na minha cabeça.


O presente me convocou.


Voamos.


Saímos na madrugada, eu estava tranquila. Seria apenas um voo curto e um pouso de reconhecimento do local. Nosso papel era apenas criar um novo assentamento como base para resgate. Por isso mesmo o susto quando vi o primeiro tiro ressoando no céu.


Fomos traídos.


Estávamos preparados para a possibilidade de um ataque surpresa, mas ela parecia improvável até vermos alguns de nossos aviões caírem. Os tiros não cessavam, começaram a ecoar pelo nosso lado também. Eu gostava das pessoas que eu já não encontrava mais no céu, minha relação com eles não tinha sido das melhores quando começamos, anos atrás, mas estávamos em dias em que todos haviam se tornado meus irmãos - me sentia numa família que via seus herdeiros passando a coroa como num jogo de batata-quente. Brincávamos que éramos anjos, vivendo entre as nuvens, protegendo os homens e abrindo mão da nossa vaga no Paraíso para defender os que amávamos, pois treinávamos para sermos assassinos frios e profissionais, sabíamos que após a morte só nos restaria a queda. A vida era o mais próximo que chegaríamos do Éden. Lembrei disso quando vi meus amigos caindo nas águas do Inferno.


...Não pude falar isso em voz alta, mas eu só queria chorar. Como uma criança que nunca imaginou que estaria em uma guerra e, de repente, se perdeu no mercado e se sentiu sozinha. Contudo minha sorte era que o meu corpo sabia o que fazer, não sabia se vestir com antecedência, mas atirava com segurança e precisão.


Meu colega que se sentava atrás de mim não calava a boca. Ele estava apavorado. Eu sabia que eu era realmente boa porque aquilo não me abalava. Desconcentrava, mas a mão seguia firme. Eu não tinha condições de acalmá-lo, precisava nos defender. Ele dizia coisas óbvias, narrava a morte dos nossos colegas como se fosse um jogo de futebol. Era irritante.


Foi um alívio quando o bom senso lhe atingiu e ele parou de falar.


"Obrigada" Foi tudo que consegui falar desde que o ataque havia começado.


A falta de interação acabou silenciando-o.


Junto com o tiro que lhe acertou e desestabilizava a nossa aeronave.


Aquele um segundo que levei para processar o que havia ocorrido, sem nunca olhar para trás, foi o suficiente para o choro, que eu tanto sentia, sair em uma lágrima.


Com todas as coisas que passaram na minha cabeça, comecei a lembrar dos meus amigos, sabia qual era a aeronave deles e sabia que estavam vivos porque os vi pousar. Resolvi segui-los, até porque a minha aeronave estava cada vez mais difícil de pilotar. Quando pousei, a maioria de nós já havia caído. Vi a cabine deles se abrindo e eles saindo, brigando. Tentei apartar.


A briga era realmente séria.

Uma luta entre duas pessoas muito bem preparadas.


Eu falava, mas ninguém me ouvia.


Sons de tiros e pessoas correndo por todos os lados.

Alguns tentaram me abordar, não consegui lhes dar atenção - eu estava muito focada em tentar entender o que acontecia para os meus amigos brigarem entre si naquele momento, com todos os sons que tínhamos que fugir. Um deles deixou o celular cair. Aquilo deveria parecer incomum, não podíamos pilotar com um aparelho pessoal ligado, mas na emoção do momento nem percebi. O celular caiu aberto na conversa do grupo do nosso trio, tentei lembrá-los de como estávamos unidos nas nossas últimas mensagens, que havia algo maior acontecendo. Foi quando chegou a notificação de uma mensagem que eu sabia ser do nosso inimigo...


Aquela possibilidade pra mim era tão inexistente que eu nunca pensei que a briga podia ter começado daí. Mas qual dos dois? Tiro, pessoas correndo, gritando, lutando, morrendo, aeronaves caindo, o caos acontecia enquanto eu me protegia tentando ler as conversas no celular para identificar de quem seria o aparelho. E então eu soube.


Em um ato ainda mais impulsivo descontei toda minha decepção no celular, a mente explodia e a mão agia. Esmigalhei o celular em uma pedra e o guardei no bolso instintivamente.


Eu já não sabia se aquilo era suor ou um choro descontrolável, mas o lugar - definitivamente - não era apropriado. Estávamos em desvantagem, se ficássemos ali iríamos todos morrer. Fui atrás dos dois, puxei o amigo que eu sabia não ter nos traído e sem dizer nada, ele me seguiu até a minha aeronave todo machucado, sentou-se, espremido, ao lado do corpo do nosso colega que seguia ali e comecei a pilotar. Não nos houve tempo nem cabeça para nada melhor que isso.


Ao fundo o traidor dizia algo, mas eu não conseguia escutar, nem se quisesse.

Concentrei tudo o que um dia eu poderia querer dizer à ele em um olhar.


Quando já subindo no ar, vi meu antigo amigo lá embaixo levar um tiro do inimigo que ele ajudou.


Quando me senti perto de alguém que sempre me trouxe segurança, a boca desenrolou. Quem não conseguia parar de falar agora era eu, eu olhava pra frente, falando do passado. Foi só em terra que percebi que o meu amigo não havia aguentado. Eu nunca soube o que aconteceu entre eles. Achei que seu silêncio era uma forma de processar tudo introspectivamente, mas na verdade ele havia partido e eu nem consegui me despedir.


Ao sair da aeronave vieram perguntar o que havia ocorrido. Eu, ali, num caça com dois corpos, processando a perda de duas pessoas que eu amava, incluindo a decepção de perder a confiança em um deles... Mas que nem fazia mais diferença, porque ele nem existia mais... Ainda assim, contei tudo. Mostrei o celular esmigalhado... Teria sido tão bom se eu não tivesse deixado o meu corpo agir em função da minha mente. E com a minha cara fechada, eles também não sabiam se aquilo no meu rosto era suor ou resquícios de lágrimas incontroladas.


De todos os meus colegas e amigos, eu era a única sobrevivente.


O dia passou e ninguém mais retornou.


E foi então que me toquei que eu também era a única mulher.


Um deles, quase tão novo quanto o meu colega que pouco antes vi morrer na minha aeronave, foi o primeiro a questionar. Surgiram dúvidas. Minha história estava mal contada, já que o celular, a única prova, não provava mais nada. E o meu antigo amigo, o traidor, era um dos mais exemplares entre nós, o melhor de todos, confiável, seguro, aceito, jamais faria isso... Jamais teria motivo pra isso. Como é que eu, justo eu, fui a única a sobreviver?


E não importava quantas vezes eu contasse a mesma história, eles criaram a sua própria versão.



 


Crônica baseada no meu sonho de 20 de maio de 2020.


Em breve coloco aqui a versão original não-croniczada.





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